«Cangamba, 16 de Novembro de 1973. Depois de quatro dias de fatigante viagem cheguei…» Assim começa a primeira carta enviada pelo meu pai à sua namorada, a minha mãe, no sítio onde passaria quase dois anos da sua vida em guerra.
A razão para querer escrever este livro começa nessa terra que sempre me soou misteriosa e que, até há pouco tempo, não sabia onde ficava no mapa de Angola (é no Leste). Começa num tempo em que milhares de futuros pais – o meu tinha vinte e dois anos quando partiu – foram enviados para sítios longínquos para combater uma guerra, no que acabou, muitas vezes, por funcionar como uma inauguração da vida adulta.
Nunca fui a Angola, mas foi de lá que me chegaram objectos que, desde pequena, povoaram a minha casa. Peles de animais que não conhecia sequer de nome, como uma de palanca que as traças semi-destruíram, estatuetas de negros, um pequenino banco com pernas de pau e assento feito de pele esticada, uma girafa de madeira que só se aguentava de pé porque tinha uma perna colada, dezenas de fotografias e slides. Em muitas casas portuguesas abundou este tipo de objectos que foram deixando de estar à vista para serem arrumados em sótãos e arrecadações. Eram coisas a que nunca dera especial importância e significado, até à altura em que percebi que histórias que eu tinha ouvido e retido, passadas no sítio de onde tinham sido trazidas, também podiam ser entendidas como memórias.
Percebi que essa herança familiar transformada, cheia de erros factuais, vazios, distorções, tinha valor enquanto tal, quando descobri que alguém tinha estudado o tema da guerra pelo meu lado, dando um nome ao que eu também era: filha da guerra.
A inspiração para o que agora é este livro de histórias foi uma investigação do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra intitulada «Os filhos da guerra colonial: pós -memória e representações», coordenada pela professora Margarida Calafate Ribeiro. Este estudo, pela primeira vez, foi saber o que pensavam os filhos dos que tinham combatido na guerra, querendo perceber de que constavam as suas «pós-memórias». Um conceito que usavam como ferramenta teórica e que ajudava a perceber do que se falava: «da memória daqueles que não a experienciaram, mas cresceram mergulhados em narrativas da guerra vivida pela geração dos seus pais».
Afinal, não era preciso ter vivido a guerra para se ter memórias. É como se, antes, considerasse que essas recordações em segunda mão fossem desmerecidas, que não eram dignas de ser contadas porque não se vivenciaram. A investigação veio conferir-lhes legitimidade, um tipo de legitimidade que não advém da experiência e que não está colada a factos e datas precisas. São relatos cheios de buracos, sem sequências certas, cronologias imprecisas. São fragmentos de histórias que os filhos interpretaram para fazerem sentido para si e que completaram com a sua imaginação. «Como ensina a psicologia, a imaginação e a memória são processos mentais equivalentes, porque afinal ambos incidem sobre o que não está a acontecer».
O valor das histórias de guerra dos filhos recai nesta reorganização afectiva que selecciona momentos do que é ouvido e os reconstrói, sendo que o transmitido também já foi filtrado para filho-criança ouvir e, neste processo, muitas histórias ficaram mais douradas e divertidas do que realmente foram. No que ouviram não está a verdade do que aconteceu aos pais, mas o que estes decidiram transmitir.
Alguns filhos nunca perguntaram nada aos pais sobre a guerra, ou por falta de curiosidade, ou por medo de os fazer lembrar o que queriam esquecer ou para lhes dar espaço para contar o que quisessem. A porta de entrada nesse passado foram muitas vezes os álbuns de fotografias da guerra que andam por várias casas portuguesas e que, na sua maioria, são já em si mesmos uma selecção de bons momentos; parecem postais pitorescos, com casotas de colmo, meninos de barriga arredondada, mulheres negras de peitos à mostra, quase parecem fotos de férias. Em muitos casos, não terá sido bem assim.
Arrumados esses álbuns, foram rareando pretextos para voltar a estas memórias.
A guerra colonial, ou do Ultramar, mobilizou cerca de um milhão de homens entre 1961 e 1975 que, na sua grande maioria, terão tido filhos. Gostaria que este livro fosse um convite a perguntas que nunca se fizeram aos pais, enquanto é tempo.
O meu pai morreu quando eu estava a aprender a fazer perguntas de adulta. Lembro-me de lhe ter feito uma, ainda adolescente, como quem pedia que me contasse uma aventura – mataste alguém? Respondeu-me que não sabia, que na guerra de guerrilha se disparava muitas vezes para o vazio, sem ver o inimigo. Ao escrever este livro dei por mim a querer fazer -lhe mais perguntas: «Sabias porque ias? O que esperavas encontrar? Tiveste medo? De morrer? De matar? Como é que a guerra te mudou?»
O escritor Ernest Hemingway disse que a guerra é o melhor dos temas, porque acelera a acção e traz à tona todo o tipo de coisas que normalmente temos de esperar uma vida inteira para acontecerem. A maioria dos combatentes esteve apenas dois anos na guerra mas penso que, para muitos, terá havido poucos momentos mais transformadores nas suas vidas. Aquilo em que se tornaram foi também resultado desta experiência. Mas o que será que verbalizaram em família?
Durante a escrita fui, pela primeira vez, ler dezenas de aerogramas que o meu pai escreveu da guerra. Não encontrei respostas. Estão propositadamente recheados de inócuos episódios, escritos para sossegar quem os recebia na “metrópole”. Não servem para dar conta de inquietudes: «A temperatura continua a subir», «vêem-se muitos campos de mandioca», «ontem faltou a luz no quartel», «hoje acordei bem disposto».
Para a realização deste livro, pouco ou nada foi perguntado aos pais destes filhos. Não me levem a mal os pais, nem levem a mal aos filhos se os seus relatos não corresponderem bem ao que sentem que viveram. Vão ter, com certeza, vontade de os corrigir, mas as vossas histórias também são deles, são puzzles feitos com pedaços do que lhes foi passado, diferentes da experiência concreta de quem esteve mesmo na guerra. Mas se as memórias que os próprios ex-combatentes tinham da guerra no período logo a seguir ao regresso, quando andavam pelos vinte anos, fossem confrontadas com o que o tempo fez delas, mais de três décadas volvidas, quando andam na casa dos sessenta, setenta anos, estas também seriam diferentes. Hoje são outras.
Para os filhos, Bcaç (batalhão de caçadores), Cart (companhia de artilharia), CCS (companhia de comando e serviços) não passam de siglas incompreensíveis; a maioria não distingue entre batalhão, companhia e pelotão, alguns entediaram-se em almoços convívio de ex -combatentes. A pergunta que perpassa estas histórias é: O que lhes ficou? Neste livro há infâncias profundamente marcadas pela violência da guerra e situações em que a guerra é um episódio de família relembrado esparsamente de forma positiva.
A geração destes filhos, que hoje anda na casa dos trinta e quarenta anos, pouco ou nada estudou sobre a guerra colonial na escola, ela é sobretudo um assunto de família. Tenho memória de a última fotografia do meu livro de História que abordou Portugal no século xx ser de cravos vermelhos, mas não me lembro de imagens de soldados de camuflado com aqueles bonés característicos com pala mole à frente e na nuca. Essas fotos andam sobretudo pelos armários das casas.
Cada uma das histórias privadas deste livro é uma porta de entrada para diversas dimensões da História da guerra colonial: a realidade dos prisioneiros de guerra, das enfermeiras pára-quedistas, dos desaparecidos em combate, das madrinhas de guerra, das vítimas de stresse de guerra, dos africanos que lutaram pelos portugueses, de ex-combatentes que também foram retornados.
Muitas destas realidades vão desembocar a estatísticas. Escolhi incluir alguns números nestas histórias, mas com o papel secundário que, neste contexto, lhes quis dar, não passam de pequeninas notas de rodapé. A primazia pertence a estas histórias da guerra de família.
Sem se conhecerem entre si, alguma das histórias destes pais entrecruzam-se, embora isso não tenha sido procurado: a Operação Mar Verde atravessou a vida de dois pais, um fuzileiro, outro que era prisioneiro e foi libertado; Alexandra Penteado e Júlia de Sá da Costa são irmãs; o pai de Joana Bastos relembra uma enfermeira páraquedista que o socorreu; a mãe de Miguel Sousa foi uma dessas quarenta e seis mulheres. Mariama Sambú fica aqui como símbolo de milhares de histórias que podiam ser contadas do outro lado de um conflito que foi baptizado com outros nomes, como Guerra da Libertação Nacional ou Guerra da Independência.
Aos filhos deste livro, espero que, ao lerem esta organização que fiz das suas memórias, percebam que lhes dei o meu sentido e ordem. Peço emprestadas as palavras do pai de Joana Bastos: «O mundo não tem poesia nenhuma. Estética nenhuma. O mundo é um acumulado de ocorrências avulso. Somos nós que organizamos o divino caos universal na vã ilusão de criar beleza e de criá-la perene». Aqui ficam estas doze narrativas de guerra contadas por alguns dos filhos de alguns dos pais que viveram a guerra colonial.
Lisboa, Outubro de 2013