A primeira vez que li alguns dos textos que agora integram Coisas de Loucos — O que eles deixaram no manicómio foi no Público, no qual parte deles foram publicados em série. Tocou-me de imediato a sensibilidade de Catarina Gomes no tratamento de um tema delicado e a sua aproximação às pessoas sobre as quais escrevia, a partir de um conjunto de objectos guardados numa caixa. Esses primeiros textos anunciavam o que é este livro e o que é a escrita de Catarina Gomes, revelada em livros anteriores e em inúmeras reportagens: uma das melhores que se podem ler hoje na literatura portuguesa. Catarina nunca se sobrepõe às pessoas de quem fala, não se precipita, não escreve com ideias feitas sobre um dado tema. Dispara, como ouvi uma vez sobre uma repórter fotográfica que se aventurou no campo de refugiados de Calais, com a cabeça e com o coração.
Os loucos do seu livro são pessoas de carne e osso, e Catarina não os trata nem como fantasmas nem como semblantes desfocados em daguerreótipos. Também não nos oferece uma colecção de retratos mortos, como os que encontramos nos álbuns de família de outro tempo. Os seus loucos são pessoas a quem a vida tirou do convívio comum, mas que viveram vidas cheias, pautadas por imaginações ardentes. Catarina Gomes trata-os como pessoas e não como doentes, põe-nos a par do leitor, de novo na rua, fora da prisão, e fá-lo a partir de meia-dúzia de cacos, objectos guardados, esquecidos, não reclamados, como quem puxa um fio com toda a paciência, no fim do qual, puxando devagar, se encontra uma alma.
Os vários capítulos deste livro são profusamente documentados, contidos, de uma precisão fraterna. Encontramos neles características de outros trabalhos de Catarina Gomes: a mesma exactidão, o mesmo ouvido, o traquejo de quem não se impõe ao que quer dizer, o silêncio necessário a ouvir falar coisas que não falam (relógios, documentos, ponteiros, papelinhos, fotografias, moedas, notas, pentes), a curiosidade gentil. As fotografias belíssimas de Paulo Porfírio acompanham o texto, na mesma ausência de fetichismo.
Ambos, escritora e fotógrafo, sabem que aquilo com que lidam, aquilo que se propuseram mostrar, não está desagarrado da vida. Como António Reis e Margarida Cordeiro em Jaime, dão-nos a ver cada uma das vidas como um mistério e não como uma fatalidade, muito menos como um diagnóstico médico.
Parece haver um aspecto comum a todos os trabalhos de Catarina Gomes: o que quer que a mova na procura das histórias que conta, as suas razões parecem ao leitor, ao mesmo tempo, pessoalíssimas e impessoais. Nunca se deixa levar, nunca entra em pânico. A sua prosa não se arranja para a fotografia, mas acompanha os seus sujeitos no seu desarranjo essencial, comum ao de todos os protagonistas de todas as histórias. Por objectivo que seja o seu ponto de vista, Catarina Gomes recusa a condescendência, não escreve como quem desvenda, como quem está segura, como quem tem saúde. Fala dos outros como quem desce uma escada íngreme, ciente de que pode cair. Li Coisas de Loucos como se lesse um romance, cheio de histórias e mistérios, pessoas vivas, meus irmãos, perdidos no tempo.